Supremo Tribunal Federal (STF)

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Nélson HUNGRIA

"Ciência penal não é só interpretação hierática da lei, mas, antes de tudo e acima de tudo, a revelação de seu espírito e a compreensão de seu escopo para ajustá-lo a fatos humanos, a almas humanas, a episódios do espetáculo dramático da vida." (Hungria)

sábado, 4 de fevereiro de 2012

STF_Duplo julgamento pelo mesmo fato: “bis in idem” e coisa julgada

HC 101.131/DF*




RELATOR: Min. Marco Aurélio
 

VOTO DO MINISTRO LUIZ FUX

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ROUBO CIRCUNSTANCIADO (ART. 157, § 2º, INCISO I, DO CÓDIGO PENAL). RECURSO ESPECIAL. DUPLO JULGAMENTO PELO MESMO FATO. SEGUNDA DECISÃO MAIS FAVORÁVEL AO RÉU. IMPOSSIBILIDADE DE REVISÃO PRO SOCIETATE COISA SOBERANAMENTE JULGADA MAIS BENÉFICA. IN DUBIO PRO REO. FALTA DE INSTRUMENTO LEGAL OU CONSTITUCIONAL PARA RESCINDIR JULGADO FAVORÁVEL AO DEMANDADO.

1. A Violação da Coisa Julgada é matéria cognoscível de ofício, por isso que, mercê de não apreciada na instância inferior, a supressão de instância inocorre, porquanto a Corte Maior pode deferir a ordem de ofício.
2. Deveras, a existência de duplo julgamento pelo mesmo fato, comprovada por prova pré-constituída, torna admissível o seu conhecimento de ofício na via estreita do habeas corpus.
3. A Revisão, no Direito Processual Penal, é instrumento exclusivamente em favor do réu, sendo inadmissível a revisão pro societate.
4. Quando o Estado exerce a persecutio criminis, a decisão sobre os fatos pelos quais o réu fora condenado só pode ser revista para abrandar a situação do sujeito passivo.

5. In casu, o paciente fora processado e condenado duas vezes pelo mesmo fato. Com efeito, foi recebida, em 7/6/2005, denúncia no processo nº 2005.01.1.003315-4 imputando ao paciente a prática do crime de roubo circunstanciado (art. 157, § 2º, inciso I, do Código Penal), ocorrido no dia 28/11/2004, às 9h, em ferro velho entre a Divineia e a Metropolitana, na cidade satélite do Núcleo Bandeirante/DF.
6. Consoante a denúncia (fls. 8/9), o paciente teria subtraído da vítima, mediante grave ameaça exercida com emprego de arma de fogo, uma bolsa preta contendo R$ 4,00 (quatro reais) e alguns objetos de uso pessoal. Posteriormente, em 7/7/2006, foi ajuizada contra o paciente outra ação penal (nº 2005.01.1.023628-0), por fato idêntico ao descrito na Ação Penal nº 2005.01.1.003315-4 (fls. e 37/38).
7. A sentença, apesar de divergências doutrinárias, deve ser enxergada como norma jurídica, e, nessa categorização, como é sabido, no conflito entre duas normas de igual hierarquia e especialidade prevalece a mais recente sobre a mais antiga.
8. A sentença posterior prevalece no Processo Penal, desde que mais favorável ao réu, em obediência à vedação da Revisão Criminal pro societate.
9. O caso sub judice não reclama a solução de se considerar anulada a primeira sentença, visto que não incidiu em qualquer vício de juridicidade, e sim de revogá-la.
10. Deveras, o pedido mediato merece concessão, qual seja, a declaração da prevalência da segunda coisa julgada.
11. Ordem concedida.

Preliminarmente, verifica-se que as ilegalidades apontadas, quais sejam, a violação aos princípios do ne bis in idem e da coisa julgada, não foram submetidas às instâncias inferiores, o que, a rigor, impediria o conhecimento da impetração, sob pena de supressão de instância. Nesse sentido, os seguintes julgados:

HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. QUESTÕES NÃO CONHECIDAS PELO STJ. AUTORIDADE COATORA. TRIBUNAL DE JUSTIÇA. INCOMPETÊNCIA DO STF. NEGATIVA AO DIREITO DE RECORRER EM LIBERDADE FUNDAMENTADA. PRISÃO ANTES DO TRÂNSITO EM JULGADO. INSTRUÇÃO CRIMINAL ENCERRADA. EXCESSO DE PRAZO PREJUDICADO. ORDEM DENEGADA. 1. O Superior Tribunal de Justiça não se manifestou acerca do regime prisional imposto ao paciente no que concerne ao crime de tráfico de drogas e da possibilidade de aplicação da causa de diminuição de pena prevista no art. 22, § 4º, da Lei 11.343/06. 2. No que diz respeito aos temas não abordados pela Corte Superior, a autoridade coatora é o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Com efeito, não compete a esta Suprema Corte conhecer dessas matérias, sob pena de supressão de instância. Precedentes. 3. A proibição ao direito de o paciente recorrer em liberdade foi devidamente fundamentada. Ademais, o paciente foi preso em flagrante e permaneceu preso durante toda a instrução criminal. 4. A alegação de excesso de prazo fica prejudicada pelo fim da instrução penal e pela prolação de sentença condenatória. Precedentes. 5. Writ conhecido em parte e denegado. (HC 100595/SP, Relatora Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 22/2/2011, DJ de 9/3/2011)

HABEAS CORPUS. PEDIDO DE LIBERDADE. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. REINCIDÊNCIA. REGIME FECHADO. POSSIBILIDADE. ORDEM PARCIALMENTE CONHECIDA E, NESSA PARTE, DENEGADA. O impetrante, embora também tenha requerido a liberdade do paciente, não apresentou qualquer fundamento para tanto. Simplesmente fez o pedido. Além disso, o STJ não se manifestou sobre a questão. Portanto, não há como o habeas corpus ser conhecido nesse ponto, sob pena de supressão de instância. Quanto ao pedido de fixação do regime prisional aberto ou semi-aberto, o TJSP, ao impor o regime fechado, considerou o fato de o paciente ser, de acordo com a sentença, “multi-reincidente”. Tal fundamento está em harmonia com o disposto nas alíneas “b” e “c” do § 2º do art. 33 do Código Penal, segundo as quais tanto o regime aberto, quanto o semi-aberto são reservados aos réus não reincidentes. Habeas corpus parcialmente conhecido e, nessa parte, denegado. (HC 100616 / SP - Relator Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, Julgamento em 08/02/2011, DJ de 14/3/2011)

EMENTA: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. PEDIDO DE COMUTAÇÃO DE PENA. JUÍZO DE ORIGEM. APRECIAÇÃO. AUSÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE DE SEU EXAME PELO STF SOB PENA DE SUPRESSÃO DE INSTÂNICAS. ALEGAÇÃO DE DEMORA NO JULGAMENTO DO MÉRITO DE WRIT PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. EXCESSO DE IMPETRAÇÕES NA CORTE SUPERIOR PENDENTES DE JULGAMENTO. FLEXIBILIZAÇÃO DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO QUE SE MOSTRA COMPREENSÍVEL. APOSENTADORIA DO RELATOR DOS FEITOS MANEJADOS EM FAVOR DO PACIENTE. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO PARA DETERMINAR SUA REDISTRIBUIÇÃO. I – O pedido de comutação da pena não pode ser conhecido, uma vez que esta questão não foi sequer analisada pelo juízo de origem. Seu exame por esta Suprema Corte implicaria indevida supressão de instância e extravasamento dos limites de competência do STF descritos no art. 102 da Constituição Federal. II – O excesso de trabalho que assoberba o STJ permite a flexibilização, em alguma medida, do princípio constitucional da razoável duração do processo. Precedentes. III - A concessão da ordem para determinar o julgamento do writ na Corte a quo poderia redundar na injustiça de determinar-se que a impetração manejada em favor do paciente seja colocada em posição privilegiada com relação a de outros jurisdicionados. IV – Ordem concedida de ofício para determinar a redistribuição dos habeas corpus manejados no STJ em favor do paciente, em razão da aposentadoria do então Relator. (HC 103835/SP Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, Julgamento em 14/12/2010, DJ de 8/2/2011)

EMENTA: Habeas corpus. Homicídio. Prisão ordenada independentemente de trânsito em julgado. Superveniência do trânsito em julgado. Writ prejudicado. Fixação de regime inicialmente fechado. Questão não submetida ao crivo do STJ. Supressão de instância. Habeas corpus não conhecido. 1. Prejudicialidade do writ impetrado perante Tribunal Superior fundada em decisão liminar, precária e efêmera, obtida pelo paciente perante esta Suprema Corte inocorrente. 2. Superveniência de trânsito em julgado da decisão condenatória, a ensejar o reconhecimento da prejudicialidade de ambas as impetrações. 3. A questão relativa à propriedade do regime prisional imposto ao paciente pela decisão condenatória não foi submetida ao crivo do Superior Tribunal de Justiça, não se admitindo a apreciação do tema por esta Suprema Corte, de forma originária, sob pena de configurar verdadeira supressão de instância. Precedentes. 4. Writ não conhecido. (HC 98616/SP, Relator: Min. DIAS TOFFOLI, Órgão Julgador: Primeira Turma, Julgamento em 14/12/2010)

No entanto, os fatos alegados na presente ordem de habeas corpus foram suficientemente demonstrados com a prova preconstituída. Assim, tratando-se de questão de ordem pública aferível de plano, possível o conhecimento de ofício. Também opinou pelo conhecimento o Ministério Público Federal, nos seguintes termos (fls. 62):

Inicialmente, verifica-se que a nulidade apontada, vale dizer, dupla condenação do paciente pelos mesmos fatos, não foi objeto de questionamento perante qualquer das instâncias inferiores.
Dessa forma, a matéria esposada no presente remédio constitucional não enseja a análise desse Excelso Pretório sob pena de indevida supressão de instância.

Contudo, da análise dos documentos acostados aos presentes autos, constata-se a procedência da alegação de bis in idem, que, por causar a nulidade absoluta de uma das ações penais, é passível de ser conhecida de ofício.

Deveras, observa-se, na documentação trazida pela impetrante, que o paciente fora condenado, primeiramente, na Ação Penal nº 2005.01.1.003315-4, cuja denúncia fora recebida em 7/6/2005 pela 7ª Vara Criminal de Brasília. Na pendência desta demanda, foi ajuizada contra o paciente, em 07/07/2006, outra ação penal (nº 2005.01.1.023628-0) pelos mesmos fatos, desta feita na 6ª Vara Criminal de Brasília, o que ensejou a nulidade absoluta ab initio desse segundo processo, em razão do fenômeno processual da litispendência.

Nesses sentido, a doutrina de José Frederico Marques, verbis:

Um dos efeitos da litispendência é o de impedir o desenrolar e a existência de um segundo processo para o julgamento de idêntica acusação. Resulta, pois, da litispendência, o direito processual de arguir o bis in idem, mediante exceptio litis pendentis.

Segundo disse CHIOVENDA, assim “como a mesma lide não pode ser decidida mais de uma vez (exceptio rei judicatae), assim também não pode pender simultaneamente mais de uma relação processual sobre o mesmo objeto entre as mesmas pessoas. Pode, portanto, o réu excepcionar que a mesma lide pende já perante o mesmo juiz ou perante juiz diverso, a fim de que a segunda constitua objeto de decisão com a primeira por parte do juiz invocado antes”. (Elementos de Direito Processual Penal, atualizadores: Eduardo Reale Ferrari e Guilherme Madeira Dezem, Campinas, SP: Millennium Editora, 2009, v. 2)

Conforme noticiado pelo Ministério Público Federal, em caso semelhante, esta Corte anulou sentença proferida em processo em que a persecução penal se deu por fatos idênticos aos julgados em causa anterior, conforme sintetizado na seguinte ementa:

Direito Penal e Processual. Litispendência. Dupla condenação pelo mesmo fato delituoso: “bis in idem.” 1. Não pode subsistir a condenação ocorrida no segundo processo, instaurado com o recebimento da denúncia a 7 de maio de 1993 (Processo n. 237/93) já que, antes disso, ou seja, a 4 de maio de 1993, havia outra denuncia, igualmente recebida, pelos mesmos fatos delituosos (no Processo 232/93). 2. A litispendência impediu que validamente se formasse o segundo processo e, em conseqüência, que validamente se produzisse ali a condenação. 3. “H.C” deferido para, com relação ao paciente, anular-se a sentença proferida no Processo 237/93 – 23. V. Criminal S.P., bem como o acórdão que a confirmou, na Apelação n. 861.423, julgada pela 11. Câmara do TACRIM-SP, ficando, quanto a ele, trancado definitivamente o processo. (HC 72.364/SP – Relator Min. Sidney Sanches, Primeira Turma, Publicação DJ 23/02/1996)

Ademais, o próprio parquet opinou pela concessão da ordem, em parecer assim delineado (fls. 62/63):

[...] impende consignar que a comprovação da ocorrência da figura do bis in idem desponta do simples confronto das iniciais acusatórias oferecidas pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, que originaram as ações penais nº 2005.01.1.003315-4 e 2005.01.1.023628-0, movidas, respectivamente, na 7ª Vara Criminal da Circunscrição Especial Judiciária de Brasília/DF, e 6ª Vara Criminal da mesma Circunscrição. Ambas as denúncias narram que no dia 28 de novembro de 2004, por volta das 9 horas, nas proximidades de um ferro velho, localizado entre a Divinéia e a Metropolitana, no Núcleo Bandeirante/DF, o paciente ** subtraiu para si, mediante grave ameaça, exercida por meio de arma de fogo, uma bolsa preta, contendo R$ 4,00 (quatro) reais em espécie e diversos objetos pessoais pertencente a ** (fls. 08/09 e 37/38).

Não há dúvida de que pelo mesmo fato, foram instauradas duas ações penais em desfavor do ora paciente. A primeira, pelo Juízo da 7ª Vara Criminal da Circunscrição Especial Judiciária de Brasília/DF, que recebeu a denúncia na data de 07/06/2005 (fl. 06); a segunda, pelo Juízo da 6ª Vara Criminal da mesma Circunscrição, que recebeu a inicial acusatória em 07/07/2006 (fl. 35).

Mas, não é só. Ao final, o paciente sofreu dupla condenação: o primeiro decreto punitivo foi proferido pelo Juízo da 7ª Vara Criminal de Brasília, aos 06/10/2006 (fls. 12/18), sendo confirmado pelo Superior Tribunal de Justiça, que tornou a pena definitiva em 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de reclusão, em decisão transitada em julgado aos 29/08/08 (fls. 24/27); já o segundo, foi prolatado pela 6ª Vara Criminal, em 25/04/2007 (fls. 39/44), e confirmado pelo Superior Tribunal de Justiça, que tornou a pena definitiva em 4 (quatro) anos, 5 (cinco) meses e 10 (dez) dias de reclusão, em decisão transitada em julgado aos 19/05/09 (fls. 29/34).

In casu, portanto, após o trânsito em julgado da decisão condenatória na Ação Penal nº 2005.01.1.003315-4, sobreveio novo pronunciamento judicial na Ação Penal nº 2005.01.1.023628-0 a respeito de fatos idênticos aos versados na primeira demanda.

A primeira condenação não pode ser alvo de Revisão Criminal, pois não configurada qualquer das hipóteses previstas no art. 621 do CPP, que ora se transcreve:

Art. 621. A revisão dos processos findos será admitida:
I - quando a sentença condenatória for contrária ao texto expresso da lei penal ou à evidência dos autos;
II - quando a sentença condenatória se fundar em depoimentos, exames ou documentos comprovadamente falsos;
III - quando, após a sentença, se descobrirem novas provas de inocência do condenado ou de circunstância que determine ou autorize diminuição especial da pena.

Por outro lado, a segunda coisa julgada, mais favorável ao réu (rectius, condenado), também não é passível de reapreciação, porquanto não é admitida no Direito Brasileiro a Revisão Criminal pro societate.

Analisando a hipótese com a qual ora nos deparamos, de conflito entre julgados, Jorge Alberto Romeiro anotou com maestria (Elementos de direito penal e processo penal. São Paulo: Saraiva, 1978. p. 40-41):

Manzini, considerando esse caso de inconciliabilidade de julgados, determinante da revisão no direito positivo italiano, o qual figura, também, no de muitos Estados, notou que nem sempre tem o instituto em estudo o fim de reparar um erro judiciário, pois a dita inconciliabilidade deve ser sempre resolvida pela prevalência do julgado mais favorável ao condenado.

A revisão, escreveu o insigne professor da Universidade de Roma, “nel caso dell’inconciliabilità dei giudicati, se talora fornisce il mezzo per eliminare l’errore, talaltra può far prevalere l’erroneo sul giusto, perchè nel detto caso la legge mira sopra tutto a far cessare un intollerabile contrasto giurisdizionale”.

No Direito pátrio a Revisão Criminal em desfavor do réu jamais foi admitida. Mesmo quando a Emenda Constitucional nº 1 de 1969 à Carta de 1967 permitiu à legislação ordinária prever hipóteses nas quais o julgado favorável ao acusado poderia ser revisto, a normativa nunca foi editada. O art. 623 do CPP, sobre a legitimidade ativa para a propositura da Revisão, prevê: “A revisão poderá ser pedida pelo próprio réu ou por procurador legalmente habilitado ou, no caso de morte do réu, pelo cônjuge, ascendente, descendente ou irmão”. O Ministério Público e o ofendido não dispõem de idêntica legitimatio.

Certo é que a decisão proferida no segundo processo é norma jurídica, que deve ser respeitada. Vale invocar a lição de José Carlos Barbosa Moreira, segundo o qual, na sentença “formula o juiz a norma jurídica concreta que deve disciplinar a situação levada ao seu conhecimento” (Eficácia da sentença e autoridade da coisa julgada, In Revista de Processo, nº 34, pág. 279). Vale dizer, a sentença trânsita em julgado é a norma jurídica para o caso concreto.

Ocorre que, como visto, essa segunda norma não é passível de revisão, pois, na espécie, isso significaria fazer prevalecer uma decisão anterior mais gravosa para o réu. Nas palavras de Fernando da Costa Tourinho Filho, “a autoridade da coisa julgada, necessária e indispensável para assegurar a estabilidade das relações jurídicas, impede um reexame contra o réu” (Código de Processo Penal comentado. Vol. 2. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 427).

Assim, temos duas decisões, de igual hierarquia e especialidade, impassíveis de impugnação. Impõe-se, face à natureza normativa das decisões judiciais, a aplicação do princípio norteador do conflito aparente de normas penais no tempo, vale dizer, prevalece a norma posterior sobre a anterior.

Aliás, no campo do Processo Civil, Cândido Rangel Dinamarco, ao sustentar a prevalência da segunda coisa julgada, ressalta a possibilidade de um novo ato estatal revogar o anterior. Assim, a sentença posterior, por não ter sido rescindida no prazo legal, teria o condão de revogar a sentença anterior. Eis como expõe seu ponto de vista, baseado nas formulações de Liebman:

Disse ele, realmente, que uma sentença proferida depois da outra tem a eficácia de cancelar os efeitos desta, como todo ato estatal revoga os anteriores. Assim como a lei revoga a lei e o decreto revoga o decreto, assim também a sentença passada em julgado revoga uma outra, anterior, também passada em julgado. Estamos pois fora do campo específico do direito processual, em uma visão bastante ampla dos atos estatais de qualquer dos três Poderes e sempre segundo uma perspectiva racional e harmoniosa do exercício do poder. Na nova lei há uma nova vontade do legislador, que sobrepuja a vontade dele próprio, contida na lei velha. No novo decreto, nova vontade da Administração. Na nova sentença, nova vontade do Estado-juiz. (Fundamentos do processo civil moderno. 6. ed., São Paulo: Malheiros, 2010, p. 1.135).

No mesmo sentido a lição de Pontes de Miranda, que entende prevalecer a segunda coisa julgada sobre a primeira, porque a norma processual somente prevê a possibilidade de desconstituir a segunda coisa julgada dentro de um prazo específico e, se isso não ocorrer, a anterior é revogada pela posterior. Confira-se o seguinte trecho da obra do autor:

Dissemos que falta o segundo elemento “sentença trânsita em julgado, que se quer rescindir”, se precluiu o prazo para a rescisão de tal sentença. Uma vez que se admitiu, de lege lata, com o prazo preclusivo, a propositura somente no biênio a respeito da segunda sentença, o direito e a pretensão à rescisão desaparecem, e a segunda sentença, tornada irrescindível, prepondera. Em conseqüência, desaparece a eficácia de coisa julgada da primeira sentença. Esse é um ponto que não tem sido examinado, a fundo, pelos juristas e juízes: há duas sentenças, ambas passadas em julgado, e uma proferida após a outra, com infração da coisa julgada. Se há o direito e a pretensão à rescisão da segunda sentença, só exercível a ação no biênio e não foi exercida, direito, pretensão à rescisão e ação rescisória extinguiram-se. A segunda sentença lá está, suplantando a anterior. [...] (Tratado da ação rescisória das sentenças e de outras decisões. 1. ed., Campinas: Bookseller, 1988, pp. 259-260)

Ademais, o fato de a segunda coisa julgada prevalecer sobre a primeira é razão única da previsão legal de ação rescisória por ofensa à coisa julgada (art. 485, inciso IV, do CPC), o que pressupõe decisão trânsita anterior. Marinoni e Arenhart, corroborando este entendimento, lecionam:

A grande questão ocorre no conflito dessas coisas julgadas, após o esgotamento do prazo existente para o oferecimento da ação rescisória (de dois anos – cf. Art. 495 do CPC). Findo esse prazo, tem-se em tese duas coisas julgadas (possivelmente antagônicas) convivendo no mundo jurídico, o que certamente não é possível. Parece que, nesses casos, deve prevalecer a segunda coisa julgada em detrimento da primeira. Além de a primeira coisa julgada não ter sido invocada no processo que levou à edição da segunda, ela nem mesmo foi lembrada em tempo oportuno, permitindo o uso da ação rescisória e, assim, a desconstituição da coisa julgada formada posteriormente. É absurdo pensar que a coisa julgada, que poderia ser desconstituída até determinado momento, simplesmente desaparece quando a ação rescisória não é utilizada. Se fosse assim, não haveria razão para o art. 485, IV, e, portanto, para a propositura da ação rescisória, bastando esperar o escoamento do prazo estabelecido para seu uso. (Processo de conhecimento. 7. ed. rev. e atual. - São Paulo: RT, 2008, p. 665 – negritei)

Na doutrina alienígena, a conclusão não diverge. De início, citamos os ensinamentos de Chiovenda (Principii di diritto processuale civile. Napoli: Jovene, 1923. p. 900):

Quanto alla contrarietá della sentenza ad un precedente giudicato, per diritto romano era questo un caso di nullitá della sentenza, per cui il primo giudicato conservava il suo vigore. Nel nostro sistema la contrarietà dei giudicati può farsi valere come motivo di revocazione (quando uma sentenza non abbia pronunciato su questa eccezione, art. 494, n. 5) o come motivo di cassazione (quando pronunció sulla eccezione relativa, art. 517, n. 8): ma decorsi i termini senza che l’impugnativa sia proposta, questa nullità é sanata, onde il primo giudicato perde valore perchè il secondo giudicato implica negazione di ogni precedente giudicato contrario.

Igualmente entende Carnelutti (Instituciones del proceso civil. V. 1. Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-America, 1989. p. 146):

[N]o puede excluirse la hipótesis del conflicto entre cosas juzgadas. No hay necesidad de agregar que el tal conflicto debe resolverse bajo pena de hacer incurable la litis, lo cual no se puede obtener de otro modo que admitiendo la extinción de la eficacia de la primera decisión por efecto de la segunda.

Essas lições podem ser transpostas do campo do Direito Processual Civil para o Processo Penal, mas uma peculiaridade deve ser ressaltada. É que a conclusão pressupõe que ambas as decisões sejam imutáveis e irreversíveis – ou seja, ambas coisas soberanamente julgadas. Ocorre que no processo penal é aberta em caráter perene a via da Revisão Criminal para o réu. Uma condenação injusta pode ser rediscutida a qualquer tempo (art. 622 do CPP - “A revisão poderá ser requerida em qualquer tempo, antes da extinção da pena ou após”), e essa pode ser considerada uma garantia constitucional, implicitamente extraída do art. 5º, LXXV, (“o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença”) e do art. 102, I, j, da Carta Magna (“Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I - processar e julgar, originariamente: j) a revisão criminal e a ação rescisória de seus julgados”).

Sendo certo que a segunda decisão, in casu, deve prevalecer, tal não significa que a primeira é nula, como sustenta a impetração. Em verdade, operou-se a revogação do decisum anterior, pelo advento de norma concreta, não mais impugnável, em sentido distinto. Inobstante, o pedido mediato merece concessão, qual seja, a declaração da prevalência da segunda coisa julgada.

Ex positis, CONCEDO a ordem de ofício para declarar revogada a condenação proferida no bojo da Ação Penal nº 2005.01.1.003315-4, que tramitou perante a 7ª Vara Criminal da Circunscrição Especial Judiciária de Brasília/DF, prevalecendo, portanto, a sentença prolatada na Ação Penal nº 2005.01.1.023628-0, da 6ª Vara Criminal da Circunscrição Especial Judiciária de Brasília/DF, devendo ser oficiada a Vara de Execuções Criminais do Distrito Federal para os registros cabíveis.

É como voto.

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